POR BERNARDO PEREGRINO E JONAS MOURA
Em seu sucesso Emoções, Roberto Carlos disse que lá vivia “momentos lindos”. Desde outubro de 2010, porém, nem Roberto nem ninguém sentiu a emoção de pisar no palco que marcou a carreira do Rei e consagrou gerações da música brasileira. A causa é um imbróglio jurídico que vem impedindo qualquer ação da UFRJ desde a retomada do espaço conhecido durante mais de quatro décadas como Canecão. Para piorar o quadro, não há consenso dentro da universidade sobre o tipo de gestão a ser adotado. Enquanto isso, mídia e classe artística fazem pressão por uma rápida solução do caso.
“O xis de toda a questão é esse ar de abandono do espaço”, disse Hélcio Gomes, diretor da Divisão de Gestão Patrimonial da UFRJ, em uma tarde ensolarada de janeiro. A administração da casa era responsabilidade do empresário Mário Priolli que, mesmo após a reintegração de posse determinada pela justiça em 2010, ainda não retirou seus bens do imóvel, como os equipamentos de luz e som. Hélcio, escolhido pela justiça como fiel depositário dos bens, afirma que a UFRJ só poderá dar uma destinação à área após a remoção do material. “Mas mesmo que a justiça determine a retirada, o ex-inquilino entra com liminares e atrasa ainda mais o processo. É uma situação bastante chata”, lamentou, sentado em sua sala no prédio da reitoria.
Os problemas causados por Priolli vêm de longa data. Em 1965, ele arrendou o terreno, que pertencia à extinta Associação dos Servidores Civis do Brasil. Em 1967, porém, a União doou a área ao campus da Praia Vermelha, que já existia desde 1950. No entanto, o Canecão – à época ainda uma cervejaria – recusou-se a desocupar o local. Era o início da luta. Em 1971, a universidade entrou na justiça para tentar ganhar a posse do terreno. Enquanto o processo andava, com o estabelecimento de diversos acordos de locação, a casa se consolidava como uma das mais importantes da América Latina. Recebeu shows memoráveis de artistas como Maysa, Maria Bethânia, Chico Buarque, Miles Davis, Ray Charles e muitos – muitos mesmo – outros.
Durante todos esses anos, a UFRJ diz ter sido vítima de um gigantesco calote. A empresa de Priolli alega ter depositado o valor do aluguel em juízo, o pela justiça até que haja uma decisão final. Mas Hélcio contra-argumenta, dizendo que o terreno já era explorado há anos sem que a universidade recebesse um centavo por isso. Segundo ele, apenas os primeiros contratos teriam gerado alguma receita para a UFRJ.
O histórico obscuro do empresário não para por aí. Para conseguir o patrocínio da Petrobras em 2007, ele teve de refundar a casa de shows, criando a Canecão Promoções e Eventos LTDA. Isso porque a antiga razão social, a Canecão Promoções e Espetáculos Teatrais, carregava consigo débitos previdenciários com o INSS que chegavam a três milhões de reais, o que inviabilizaria a parceria com a estatal. Em 2008, quando o escândalo veio à tona, a petroleira retirou o patrocínio da casa. Priolli tem também uma série de dívidas com artistas e com o Ecad, órgão responsável pelo recolhimento dos direitos autorais.
“Olhando para trás, o saldo é absolutamente negativo. São 40 anos de calote”, avaliou Kenzo Soares, diretor cultural da gestão passada do DCE e também integrante do diretório recém-empossado. O movimento estudantil propõe uma gestão integralmente pública, popular e democrática, que beneficie não só alunos da UFRJ, mas também artistas populares sem espaço para se apresentar, que poderiam concorrer com projetos em um modelo de editais. De qualquer forma, Kenzo acredita que a universidade tenha produção cultural suficiente para ocupar a casa, seja com os espetáculos do curso de direção teatral ou com os trabalhos dos alunos da Eba, a Escola de Belas Artes.
Embora seja defendida por muitos alunos e também pela Adufrj, a proposta encontra resistência em diversos setores que não acreditam na competência da universidade para gerir o espaço. A reitoria, segundo Hélcio, pretende apresentar no Consuni uma proposta de gestão partilhada, que permitiria à UFRJ utilizar o local para atividades acadêmicas de segunda a quinta-feira, enquanto no resto da semana uma gestão empresarial estabeleceria a programação da casa, nos moldes do antigo Canecão. Ele destacou que a pressão da sociedade pela reabertura é enorme – e só vem crescendo com a lentidão da justiça. “Desde a reintegração eu recebo telefonemas de vários empresários”, revelou. “A universidade está tentando, junto com a procuradoria, agilizar esse processo de desocupação.”
Quando lhe perguntamos, em uma manhã recente, sobre a posição do DCE frente à proposta da reitoria, Kenzo alegou que já existem espaços privados com a mesma função na cidade. Ele reforçou que o papel da universidade pública não deve se limitar à graduação e à pesquisa: deve ter, também, um viés de extensão e aplicação prática do conhecimento em benefício da comunidade acadêmica e da população. “Uma gestão completamente pública, em um sistema até mesmo de parceria com outras universidades, só reforçaria a vocação cultural da UFRJ. Se até a Uerj consegue gerir o teatro Odylo Costa Filho, por que nós não podemos?”, defendeu.
Em meio à disputa, uma terceira proposta surgiu com o projeto do professor Carlos Vainer, que é membro do Comitê Técnico do Plano Diretor 2020. O que ele sugere é uma administração exclusiva da universidade, por meio de uma fundação que também cuidaria da política cultural da UFRJ. No entanto, isso aconteceria sem fechar a porta aos interesses privados. “Recebemos o Canecão. E o que a gente quer fazer? Um espaço público voltado para a arte, para a educação. Mas temos que entender que uma parcela da cidade vê aquilo como um espaço da música comercial, do grande show”, sustentou.
Uma das possibilidades consideradas em seu projeto é o aluguel do espaço para a realização de eventos privados, como os antigos shows. A ideia é que isso garantiria um autofinanciamento da casa. Vainer ressaltou que o ex-Canecão seria, assim, uma peça do projeto que prevê a transformação do campus da Praia Vermelha num centro de convenções, diretriz presente no plano diretor, mas cercada de muita polêmica.
Enquanto isso, o reitor Carlos Levi confirmou ao jornal O Globo que a proposta da UFRJ será a de gestão partilhada. Mesmo sem consenso, a instituição já contratou o produtor Adonis Kharan, que trabalhou na TV Globo e na extinta TV Tupi, para fazer sondagens no mercado sobre as possibilidades de uso do espaço. Hélcio Gomes justificou que o levantamento é apenas para discutir a proposta com a comunidade acadêmica. O movimento estudantil, por sua vez, está engajado em aprovar no primeiro Consuni do ano uma comissão paritária entre professores, alunos e funcionários que seja responsável por formular o projeto de gestão do Canecão.
A Reitoria já encomendou projetos para obras emergenciais na casa, deteriorada pelo longo período sem uso. Está fazendo também um levantamento de custos para viabilizar sua reabertura. Além disso, o ex-Bingo Botafogo, também recuperado pela universidade e vizinho do ex-Canecão, foi reformado e ocupado com uma exposição da Casa da Ciência – “exemplo de como a UFRJ tem capacidade cultural de retomar um espaço”, segundo Kenzo. O certo é que, a curto prazo, haverá muitas emoções – se não iguais, ao menos tão intensas quanto as de Roberto Carlos.