Emília e Capitu passaram por cima de muitos homens. Dona Ruth e Elena também
POR ANA CLARA VELOSO E PAULA FERREIRA
Emília e o desquite
Sabe aquele papo de que “quem nunca teve dá mais valor”? É o que explica a fala desenfreada de Emília, a boneca mais famosa da literatura brasileira. Muda de nascença, foi só tomar a pílula falante do Dr. Caramujo que saiu expondo suas opiniões a torto e a direito.
Nem bem os movimentos feministas se consolidaram na cidade, a menina já discursava sobre as questões de gênero no Sítio do Pica-Pau Amarelo. Nesse ponto, aliás, não podemos tirar o mérito de D. Benta, Tia Anastácia e Narizinho. Em um sítio em que as mulheres lideravam a cozinha e a administração, passando pela contação de histórias e pela escolha da brincadeira da vez, a boneca não podia ser diferente. E, se ela tinha conquistado uma voz, ia usar em favor de tantas outras que eram emudecidas todos os dias.
Questionava comportamentos masculinos e denunciava abusos de poder. Não poderia assim, subjugar-se a um marido. Casada com Rabicó, a paciência da boneca de pano logo se esgotou. Com os nervos à flor da pele, Emília inovou e tomou uma decisão que antes não cabia a mulher alguma: desquitar-se. Em um tempo em que a situação nem era legalmente reconhecida, ela se fez entender pelas palavras irreverentes e deixou claro não se subodirnar a um “porco idiota”.
Elena Rodrigues e as urnas
Durante as campanhas eleitorais da década de 80 na Baixada Fluminense, políticos endinheirados contratavam moças bonitas para panfletarem nas ruas, desfilando com tops e shorts curtos. Queriam passar uma “boa imagem” aos homens, enquanto o voto dessas mulheres nem eram disputados. Afinal, elas votariam em quem os maridos votassem.
Indignada, Elena Rodrigues se juntou a outras companheiras em encontros regulares. “Você pode não acreditar, mas mulher sabe votar!”, era o lema das reuniões. Com a experiência de quem já participara de outros tantos atos e vencera em muitos, a jovem de vinte anos era uma das oradoras do grupo. Preparava comícios e discussões e convocava as mulheres para a rua.
Os encontros começaram com cerca de dez pessoas, mas logo cresceram. No decorrer de um ano, o interesse aumentou e as adeptas se multiplicaram. Política tinha virado papo de dona-de-casa. Os votos guiados pelos “chefes da família”, se não acabaram, ao menos diminuíram muito. A troca do poder de escolha por quilos de alimento também. Durante a campanha para as eleições de 82, era fácil reunir em um dia mais de 200 mulheres que já expunham sem medo suas opiniões. E, um ano depois, as ruas estavam cheias delas, todas lutando no movimento pelas diretas – e, claro, pelo fim da ditadura militar no Brasil.
Dona Ruth e o Estado Novo
Passar manteiga no pão era um grande gesto em 1932. Era assim que muitas mulheres contribuíam para a mudança do cenário político da década de 30. Com apenas doze anos, Ruth Guimarães ajudava a preparar o lanche dos soldados paulistas que encabeçavam a Revolução Constitucionalista.
A faca foi substituída pela máquina de escrever e, já no Estado Novo, a moça cursava Letras Clássicas na USP e ajudou a criar uma oficina clandestina de publicações contra o regime. Ruth passou então a receber cartas com trechos rasurados dos colegas de redação e tinha que adivinhar as palavras que a censura havia eliminado de suas correspondências – talvez tenha vindo daí a alcunha de “bruxa” que tanto se orgulha de carregar.
A bruxa, porém, não usou magia para se tornar a primeira escritora negra a se projetar nacionalmente. Arriscando-se a falar de folclore e a valorizar a cultura popular em um país marcado pela exaltação da cultura europeia, conquistou espaço. “De repente descobriram que eu sabia escrever”, contou Ruth. Hoje, ocupa a cadeira 22 da Academia Paulista de Letras.
Aos 92 anos, no entanto, ela não se limita a tomar chá com os acadêmicos: é também secretária de Cultura de sua cidade natal, cumprindo com excelência as obrigações que a função requer. Dona Ruth demonstra até hoje a força e pró-atividade de uma mulher que nunca se conformou em deixar as coisas como estavam. Seu lema? O tempo respeita quem dele sempre fez bom proveito.
Capitu e os olhos de ressaca
Carregar com honra o peso das convicções e proclamá-las sem pudor para os que querem e os que não querem ouvi-las são feitos corajosos. No tempo em que as mulheres eram privadas até mesmo de ter personalidade própria, “ciganas oblíquas e dissimuladas” era o rótulo que recebiam as que ousavam se pronunciar. Maria Capitolina Pádua era uma dessas ciganas.
O maior erro de Capitu, como é mais conhecida, era ser muito menos tola do que lhe impunham a época e os costumes. A ousadia de mostrar os ombros no teatro e de tratar um homem com ironia era inaceitável em uma moça de seu tempo. Certamente, na opinião dos vizinhos, não fosse o imenso amor de Bentinho, ela jamais teria se casado. Ora, quem além dele gostaria de desposar uma menina tão petulante? Que absurdo imenso uma moça de catorze anos ser esperta daquele jeito. Como os pais não deram um corretivo na pequena? Capitu ficou nos idos tempos do século XIX, entretanto aqueles que lhe apontavam o dedo continuam presentes até hoje.
Tivesse ela frequentado o Rio de Janeiro dos anos 2000, continuaria sendo alvo de críticas. Afinal, o tempo passou, mas a época e os costumes continuam, sutilmente, exigindo a tolice das moças. Encontraria a crítica velada e disfarçada dos que negam o preconceito, mas o exercem de maneira religiosa. Melhor passar por isso no século XIX, tempo em que, ao menos, as mulheres tinham consciência da dificuldade de pertencer ao gênero. São rigorosos os anos do novo milênio: iludem e fantasiam na cabeça da maioria que a igualdade está aí, como se já não fosse mais preciso lutar.