segunda-feira, 14 de maio de 2012

Entre Heidegger e Platão

Psicanalista, advogado e filósofo, Márcio Amaral tem um sonho desde criança: quer virar santo

POR CAROLINA CARVALHO

Eram 11h de uma quarta-feira, quando o professor Márcio Tavares D’Amaral entrou na sala 140 da Eco. Um aluno o esperava na porta e perguntou se a aula começaria sempre no horário. “Sim, porque agora voltei a ser pontual”, divertiu-se, ajeitando a cadeira onde se sentaria pelas próximas duas horas, falando para uma turma de oito alunos da pós-graduação. Eles chegaram aos poucos e foram cumprimentados individualmente pelo professor – com apertos de mãos aos homens e dois beijinhos nas mulheres.

O tom da conversa foi informal, apesar de girar entorno do pensamento do filósofo Heidegger. A descontração é marca de suas aulas. Dois dias depois, em uma sala repleta de estudantes do primeiro período, ele narraria sua viagem à Grécia, quando entrou nas escavações arqueológicas da sala de aula de Platão e pegou três pedras como souvenir. “Portanto, frequentei a Academia de Platão”, concluiu aos alunos. “Se quiserem, trago as pedras para vocês verem.” A cena parece não combinar com o homem de óculos, cabelos bastante grisalhos e de 64 anos que passa sempre bem arrumado pelos corredores da Eco. Mas Márcio Amaral não é mesmo uma pessoa previsível.


“Eu achava que seria advogado”, contou o catarinense de Blumenau, rodeado por fotos de esculturas gregas e livros de filosofia na sala do Idea, o Laboratório de História dos Sistemas de Pensamento, núcleo de pesquisa da Eco fundado e dirigido por ele. “Tinha admiração ideológica pela profissão.” O amor pelos tais sistemas de pensamento, no entanto, já existia desde que o jovem Márcio, aos doze anos de idade, encontrou um livro de história da filosofia na biblioteca do pai, volume que virou seu livro de cabeceira. Resolveu que se dedicaria à área por conta própria, sem desistir do direito.


Márcio nunca colocou os pés num tribunal. Durante a faculdade, em meio à ditadura militar, o envolvimento com o movimento estudantil tornou-se prioridade frente às carteiras das salas de aula. “Sempre fui bom aluno, mas não tinha tempo para estudar”, explicou. “Estava ocupado com coisas que me pareciam mais importantes.”

Em 1971, recém-graduado pela Puc, Márcio chegou à Eco. Passou a ensinar teoria da informação e da linguagem em “parceria” com Muniz Sodré. “Na época, 80% dos professores eram contratados como auxiliares de ensino”, relembrou com seu tom de voz calmo. “Havia um contrato precário e só nos tornávamos oficialmente professores depois de fazer o mestrado.” A denominação, na verdade, era só uma formalidade, uma vez que, além de lecionarem, os auxiliares chefiavam departamentos, regiam disciplinas e até inventavam novas matérias para a grade.

Desde então, ele nunca se afastou da escola que diz considerar sua casa. Em 2000, pediu sua aposentadoria e se tornou professor emérito, o que o deixou livre de obrigações burocráticas e do regime de dedicação exclusiva. “Cheguei a trabalhar dezesseis horas por dia, até ficava doente”, rememorou.

Um dos motivos que o levou a tomar a decisão foi a vontade de se dedicar mais a seu consultório de psicanálise, que inaugurara em 1996. O interesse pela clínica freudiana surgiu quando ele mesmo era analisado, anos antes. Decidido a abandonar o divã e trocar de posto, ingressou no Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, uma sociedade de formação de psicanalistas. “Hoje já fechei meu consultório, porque... chega, já deu”, suspirou. “Conforme meus pacientes foram se dando alta, não assumi novos. Ainda tenho duas e, um dia, talvez não tenha mais ninguém.” Márcio não vê na atividade uma fonte de renda. “As pessoas pagam o que podem.”

Além da psicanálise, outra razão que o levou a diminuir a carga de trabalho na Eco foi o Instituto Brasileiro dos Direitos das Pessoas com Deficiência, fundado por sua esposa em 1998. O envolvimento com a instituição, que no início se organizava em torno de um escritório de advocacia, fez com que o direito voltasse à sua vida: nos meses seguintes, ele estava de volta ao campus da Puc para estudar Processo Civil – dessa vez, como ouvinte. Ele é presidente do IBDD e participa de reuniões semanais com os advogados da Ong para analisar os processos. “Toda sexta-feira saio batido da aula do primeiro período e vou direto para lá”, comentou.

Filho de pai católico e mãe protestante, quando criança Márcio queria ser padre franciscano – e santo. A segunda ambição, de acordo com ele, ainda permanece. Mas houve tempos em que esteve brigado com a religião. Depois de anos de estudo sobre arqueologia bíblica, o professor deixou de acreditar nos milagres. Afinal, eles já haviam sido provados cientificamente. Passou, então, mais de trinta anos em um limbo, em que oscilava entre o ateísmo e o agnosticismo. “No começo, eu tinha aquela arrogância juvenil do ateísmo”, confessou. “Mas depois fui sentindo saudade de Deus. Eu preferia que Ele existisse, mas, que pena!, não acreditava.”

Aos 52 anos, no entanto, a certeza da existência Dele ressurgiu, e Márcio recuperou a fé. A virada aconteceu no avião, durante uma ida a Blumenau, enquanto lia A eminência, de Morris West, um romance sobre um cardeal cotado para ser o próximo papa, mas que perdera a fé. Continuou sendo padre porque era o que sabia fazer. “Eu pensei: como pode, ele é um cardeal e não tem fé, e eu não sou nada e tenho. Essa foi a hora em que Deus me tocou”, contou. Pedi-lhe que me explicasse melhor o que se passara em seus pensamentos. “Não me pergunte mais do que isso, porque simplesmente não sei explicar”, respondeu.

Márcio voltou, então, a frequentar a Igreja Católica. Ele acredita na presença real de Cristo durante os cultos e é crítico aos padres que celebram o ritual sem paixão, de forma burocrática. Perguntei-lhe se não havia conflitos na fé de um estudioso. “A ordem da razão não tem competência para desestruturar uma experiência da fé. Elas não se conflitam nem se complementam, porque não falam da mesma coisa”, assegurou com tranquilidade. “Gostaria até de entender mais sobre essa relação entre fé e razão, porque acredito que seja isso o que move nossa cultura.”

A volta da crença em Deus, no entanto, foi uma opção que extrapolou os domínios da vida privada. Em sua pesquisa, que trata da relação entre filosofia e ciência, ele incluiu a religião – o que lhe custou a bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o CNPq. Ele suspeita ter deixado de ser, para a agência, um pesquisador da área da comunicação. Porém, não se arrepende: “Perdi a bolsa, mas ganhei a liberdade.”

Durante os anos em que passou afastado do catolicismo, sentiu necessidade de contato com o extra-ordinário – “assim mesmo, com hífen”, como gosta de ressaltar. Essa falta levou-o a enveredar-se pela poesia e lhe rendeu a publicação de cinco livros. Mas quase não escreve mais: se, por um lado, o reencontro com Deus saciou-lhe a sede pelo transcendente, por outro, desde a volta às aulas para a graduação, conta com um público cativo. “Estou sempre falando com pessoas, de modo que o que eu tenho para dizer, digo para quem está lá para ouvir.”

Não há dúvidas de que Márcio é um dos professores mais queridos da Eco. O professor, que – como todos sabem – deseja morrer em sala de aula, foi paraninfo ou patrono na colação de grau das últimas cinco turmas da escola. Vez ou outra, aparece em curtas e outras produções de alunos, como quando estrelou um comercial de KY só para ajudar um grupo de estudantes em um trabalho final de marketing. “Minha esposa e minha filha têm até ciúmes dos meus alunos”, revelou entre risos. “São os ‘meus aluninhos’, como elas chamam.”
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